Ficção sobre jornalismo é um gênero difícil, pois o repórter é normalmente associado a uma vida glamourosa, sem rotina e muito bem de vida. Sempre bem conectado e que escreve somente coisas importantes, aquelas reportagens investigativas que derrubam presidentes, o jornalista raramente se reconhece nesses livros.
Nada de buraco de rua nem preocupação com o passaralho. A ficção costuma romantizar o jornalista. Mas há exceções.
Há que se levar em conta atualmente a briga por espaço contra as fake news e os ataques constantes de uma trupe que enxerga o jornalismo como inimigo mortal.
Selecionei três livros de ficção que avançam sobre a carreira jornalística com criticidade, fato que incomodou muitos, mas que, por suas qualidades, ampliaram o debate — ou deveriam ter ampliado. Eis o momento de colocá-los de volta à mesa.
Divórcio
O romance escrito por Ricardo Lísias causou polêmica quando foi lançado, por colocar na fogueira o trabalho de uma jornalista de cultura. Muita gente tentou achar elos com a realidade, e isso acabou gerando até problemas para o autor.
Em “Divórcio” (Alfaguara), Ricardo está se separando da mulher, uma bem sucedida jornalista, e descobre o diário dela. Sem remorso, ele começa a divulgar o conteúdo, não sem ironizar os trechos em que ela relata seu trabalho.
Relações com fontes e entrevistados, comportamentos inadequados em grandes coberturas e um tom blasé com o cotidiano são expostos sem dó.
Teve jornalista que vestiu a carapuça, e a polêmica acabou por esconder o mérito do livro: um belo trabalho de autoficção, que tem o jornalismo como protagonista.
Número Zero
Último romance de Umberto Eco (1932-2016), o livro é um exercício ficcional que antecipa os entraves que as redes sociais e a tecnologia iriam proporcionar tempos depois.
Pois o romance se passa no início dos anos 1990, quando Facebook, Twitter e bots ainda eram delírios de ficção científica.
Um grupo de jornalistas é convocado para editar um novo jornal. Mas o projeto editorial não segue as regras básicas da profissão. A proposta é criar dossiês contra personagens ilustres e chantageá-los. Dessa forma, o jornal se anteciparia a um escândalo e poderia manter um “diálogo” com as vítimas.
O tal número zero do título se refere à edição teste, produzida sem checagem e sob um manual um tanto duvidoso.
Foi na época do lançamento de “Número Zero” (Record) que Eco deu a entrevista em que acreditava que as redes sociais estavam imbecilizando as pessoas.
Os Imperfeccionistas
Tom Rachman trabalhou como correspondente da Associated Press, e isso ajudou a conceber o romance. Lançado em 2011, o livro capta o último momento glorioso de veículos internacionais, com correspondentes espalhados pelo mundo e edições diferentes para cada país.
O jornal retratado em “Os Imperfeccionistas” (Record) tem sede em Roma e foi fundado em 1950 com a proposta de ser um veículo de alcance mundial. Eram outros tempos, e o século 21 foi (e vem sendo) implacável.
Rachman conta a história de 11 jornalistas, em forma de capítulos, e a vida de cada um deles se confunde com a do jornal, já em decadência — a tecnologia chega para arrebentar o sonho romântico do fundador.
As histórias pessoais se confundem com a do jornal — assim como é na vida real, em que jornalistas acabam por se dedicar tanto à profissão que por vezes esquecem da vida pessoal. Neste caso, a ficção sobre jornalismo ganha ares de reportagem.