Afetos Ferozes (Todavia) foi eleito pelo The New York Times como o melhor livro de memórias dos últimos 50 anos. Escrito pela jornalista Vivian Gornick, a peça é um relato dos seus passeios com sua mãe pelas ruas de Manhattan, enquanto conversam sobre o passado vivido no Bronx em que a presença feminina foi marcante para o desenvolvimento de sua vida.
As conversas revisitam o período em que Gornick começa a sofrer a influência de mulheres fortes, época também em que as mulheres se erguem e exigem direitos. Tornam-se protagonistas.
Logo na abertura, Gornick escreve o parágrafo que define o livro e coloca em perspectiva o que vai conversar com sua mãe ao longo das pouco mais de 200 páginas:
“Vivi naquele prédio entre os seis e os vinte e um anos de idade. Havia vinte apartamentos, quatro por andar, e na minha memória era um edifício cheio de mulheres. Mal me lembro dos homens. Eles estavam por toda parte, lógico — maridos, pais, irmãos —, mas só me lembro das mulheres. E na minha memória todas são rudes, como a sra. Drucker ou ferozes como minha mãe. Elas nunca falavam como se soubessem quem eram ou entendessem o acordo que haviam feito com a vida, mas era comum que agissem como se soubessem. Espertas, voláteis, iletradas, funcionavam como personagens de Dreiser.”
A voz que Gornick imprime equilibra os diversos tons que o livro encarna, do feminismo à pura memória, passando por parte da história dos Estados Unidos e como as relações familiares foram mudando ao longo dos anos, com a tomada de direitos pelas mulheres.
O que realmente comove é como a autora conduz a narrativa, o que leva o leitor a se juntar aos passeios com sua mãe. Forte, dura, às vezes injusta, Gornick escreve o que é a própria vida.
Já Karina Sainz Borgo busca na Venezuela atual a inspiração para um romance potente, que se lê em uma boa noite. “A Filha da Espanhola”, título original, virou Noite em Caracas (Intrínseca), para ganhar apelo, no momento em que o país sul-americano enfrentava uma grave crise institucional.
Adelaida Falcón volta à Venezuela para o enterro de sua mãe e encontra um país sem ordem e refém da violência. O que era para ser um encontro com o passado se revela um choque brutal com o presente, quando o prédio onde vive é tomado por um grupo de mulheres revolucionárias.
As ruas estão sob ataque, e Adelaide encontra abrigo em uma vizinha, a tal espanhola do original. Vai contar com a ajuda de um velho amigo para reescrever sua história, assim como muitos venezuelanos estão tentando fazer.
Borgo também é jornalista e vive na Espanha. Sua prosa é fluente e prende o leitor às páginas de forma visceral. “Noite em Caracas” se desenrola como uma longa reportagem, tal a similaridade que a trama vai revelando. Sem tomar partido, a autora deixa o livro transpirar a ficção necessária a fim de evitar armadilhas.
Teoria King Kong (N-1 Edições) fecha a lista pois é o grito mais forte dos três livros. As memórias de Virginie Despentes incomodam, chocam e forçam a reflexão. Aqui, não há privacidade, e essa foi a escolha da autora francesa, uma das vozes mais ferozes, para usar o adjetivo que abriu o post, do feminismo.
Feroz como força bruta, de desconstrução e enfrentamento. Despentes narra sua vida na França, e detalha como o punk e a violência que sofreu foram determinantes para sua formação.
Vítima de estupro, foi prostituta, passou um tempo em um hospital psiquiátrico e usou da sua experiência para dirigir filmes — sua obra mais famosa é “Baise-moi”, que conta a história de duas mulheres que se revoltam após um ataque sexual brutal.
Despentes mescla sua história com reflexões sobre o feminismo e o enfrentamento do machismo em suas várias vertentes (sexual, afetiva, política). Sua prosa é crua, sem meios termos. Não mascara nem tenta florear. Diz e relata o que viveu e o que acredita, com uma voz que provoca a reflexão sem impor caminhos.
Necessária.