A chegada do novo governo ao poder gerou uma leva de livros que questionam o risco à democracia e aos direitos conquistados por minorias e dezenas de setores da sociedade civil. Caso de “Democracia em Risco?”, coletânea de ensaios lançada pela Companhia das Letras logo após 1º de janeiro.
Outro livro que chega já com o governo em andamento é “Ninguém Solta a Mão de Ninguém”, da editora Claraboia, que carrega o subtítulo “Manifesto afetivo de resistência e pelas liberdades”.
Antes, ensaístas, sociólogos e filósofos já tinham se debruçado sobre o avanço do fascismo e da extrema direita em todo o mundo, principalmente após a vitória de Donald Trump. Comentei na edição 8 desta coluna sobre “Como a Democracia Chega ao Fim”, de David Runciman. Esse olhar para trás é fundamental para entender os riscos que o governo brasileiro lança ao país.
Da mesma forma, a reflexão no Brasil precisa voltar dois passos, para entender como se formou esse colchão de segurança para a eleição da trupe Bolsonaro.
O livro Em Nome de Quem? — A Bancada Evangélica e seu Projeto de Poder (Civilização Brasileira) é um dos meios que ajudam a entender a eleição. Não dá conta de explicar o que motivou parte da população a votar em Bolsonaro, até porque a obra se limita a esse recorte explicitado no título.
A reportagem de Andrea Dip é carregada de dados, como doações em campanhas, e muito bem pesquisada. A jornalista cercou bem sua apuração e conseguiu emergir com um conjunto de informações que contextualizam o pleito de 2018.
No livro, Bolsonaro aparece como coadjuvante de nomes como Silas Malafaia, Marco Feliciano e Eduardo Cunha — ainda que ele não se declare evangélico, mas católico. De qualquer forma, o agora presidente está lá, mas atuando na periferia, como sempre atuou. Dip tenta entender como funcionam a Frente Parlamentar Evangélica, as teorias que dominam o pensamento conservador e religioso e o modo como esse setor age, com o apoio da Record.
Se peca por conta do recorte, sem se aprofundar nos temas ideológicos — quando não abre espaço para um debate mais diverso, sem se prender a vozes de esquerda, o que reforço o caráter ativista —, a jornalista acerta ao explorar um tema delicado e virulento. As reações dos evangélicos costumam ser violentas, como Elvira Lobato enfrentou anos atrás após uma reportagem sobre o império de comunicação erguido pela Record.
Esses erros não impedem de fazer com que a obra seja fundamental para esclarecer muito o que pensa este governo — e também para entender que ainda há muito por vir.
Mark Twain e a hipocrisia
O Homem que Corrompeu Hadleyburg (Grua) foi escrito enquanto Mark Twain estava de luto pela morte de sua filha. O escritor criou uma obra que deveria ser lida, relida, estudada e ensinada. Hadleyburg é um lugarejo que se orgulha da sua honestidade. Todos lá ostentam essa fama e gostam de difundi-la. Até que um visitante é tratado mal por um dos habitantes.
É a deixa para a criação de um plano que vai escancarar a hipocrisia e colapsar a cidade. Engenhoso, o homem busca expor fragilidades e fraquezas, ganância que não cabia na definição da cidade.
Mark Twain abusa do sarcasmo nesta novela, uma leitura deliciosa que nos força a colocar em xeque nossas definições.
Leituras em 7 Linhas
Hoje É o Último Dia do Resto de Sua Vida (WMF Martins Fontes) é a biografia da artista Ulli Lust em quadrinhos — e essa é uma definição redutora. Crônica e relato de viagem também cabem. Em 1984, ela e uma amiga, ambas punks, resolvem sair da Áustria e viajar para a Sicília. A história passa pelo trinômio sexo, drogas e rock, mas com detalhes que fazem essa HQ crescer. A violência que sofreu por ser mulher, o medo e a incerteza do caminho fazem do livro uma obra que capta uma época e mostra, com uma crueza encharcada de sensibilidade, como pouca coisa mudou em mais de 30 anos. Esta é uma HQ para ler e reler.
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De Antonio Altarriba, já tinha lido “A Arte de Voar”, sobre seu pai. Agora, em Asa Quebrada (Veneta), ele volta seus olhos para sua mãe. O autor descobre, no leito de morte dela, que pouco sabia de seu passado — inclusive de um braço que quase não se movimentava, um detalhe despercebido em toda a sua vida. Altarriba conta a história da sua mãe, mas, assim como aconteceu no volume dedicado ao pai, traça em paralelo com a história da Espanha. O Guerra Civil e o franquismo emergem da HQ, enquanto ele vai recolhendo pedaços da vida da sua mãe. Delicada e afetuosa, a obra acerta as contas não sem deixar um gosto amargo.
O diário de Piglia
Demorei quase um ano para ler Anos de Formação — Os Diários de Emilio Renzi (Todavia). Alter ego de Ricardo Piglia, Renzi escreve sobre seu cotidiano, como um espelho do autor argentino.
A leitura começou com certo vigor, mas depois de um tempo mostrou cansaço. Outros livros despertaram interesse e acabaram por interromper aqui e ali a continuidade desse diário, o primeiro volume de um trilogia.
O avanço não veio sem custo, pois havia prazer em algumas partes do livro. As boas discussões sobre literatura e autores propostas por Renzi/Piglia valem o esforço. É um livro para iniciados e, temo em dizer, para fãs de Piglia.
Cobiça
Amós Oz, morto no fim de 2018, conversou com sua editora sobre criação, livros e outros temas, e seis desses papos saem em Do Que É Feito A Maçã (Companhia das Letras). Gosto muito de livros com diálogos, como estes de Borges. O de Oz entra na lista de desejos.
Assim como Repórter: Memórias (Todavia), de Seymour Hersh.
Leituras e outras indicações
On-line 1: No Los Angeles Review of Books, Michael J. Agovino publica um ensaio em que compara futebol e jazz, como artes do improviso.
On-line 2: O blog Página Cinco escreve a respeito de “Literatura Nazista na América”, de Roberto Bolaño.
Para ouvir: A leitura de “À Sombra dos Viadutos em Flor”, de Cadão Volpato, me fez voltar aos 80 e à banda Fellini. O melhor álbum é o primeiro, O Adeus de Fellini, bom como eles nunca mais foram.
Na TV: Mosaic, boa série de Steve Soderbergh de seis episódios. Foi lançada em 2018 na HBO, mas só fui ver recentemente. A premissa é a boa velha investigação de um assassinato, mas que não avança de forma tão linear como produções tradicionais. Pensada para ser transmitida por um aplicativo, chegou adaptada à TV. Mas funciona bem. Há trocas de direção, perguntas sem respostas, mas nada que impeça o envolvimento na trama. E tem Sharon Stone.
Alta Fidelidade
Desta vez, separei cinco livros de autores chilenos. O país carrega uma rica bibliografia, e sua prosa contemporânea tem nomes com obras que questionam o passado político e revisitam suas memórias.
O Lugar sem Limites, de José Donoso
Formas de Voltar para Casa, de Alejandro Zambra
Sangue no Olho, de Lina Meruane
A Contadora de Filmes, de Hernán Rivera Letelier
A Última Névoa, de María Luisa Bombal

Como você, achei Os Diários de Emilio Renzi uma leitura cansativa e em muitos momentos enfadonha. Há bons momentos, reminiscências ternas de sua juventude, e boas indicações de leitura (li Pavese e Leiris por causa dele), mas a prosa de Piglia definitivamente não me encanta – Respiração Artificial e Dinheiro Queimado me deixaram com impressão parecida. Não devo voltar a ele.
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Os ensaios dele são muito bons. Gostei de alguns romances, como Ida e Dinheiro, mas outros não desceram. É um autor cuja prosa realmente não funciona para todos
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Ainda estou para ler os diários do Piglia, mas livros como Respiração Artificial me encantam profundamente pela capacidade de transformar as ideias e o pensamento num romance policial. É um jeito irônico e muito competente de dizer que a narrativa tradicional morreu, mas passa bem.
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Sim, e não só policial. O Caminho de Ida é um mistério bem construído e narrado. Reside nesse ponto que você destacou a força da literatura ficional de Piglia
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