Por Paulo Sales
Muitos anos depois, diante da minha velha coletânea de Bob Dylan, eu recordaria aquela tarde remota em que um amigo me levou para conhecer o bardo judeu romântico de Minnesota.
Eu era então um jovem de 17 anos, ansioso por desbravar o mundo e fazer dele o meu quintal. Estávamos de férias em Ipameri, uma pequena cidade do interior de Goiás, na casa de uma moça mais velha e meio hippie, que tinha a velha coletânea de Bob Dylan (a mesma que eu ganharia de presente um mês depois, no dia do meu aniversário).
Meu amigo tirou o vinil, pôs no toca-discos e de repente a vida se expandia, como se eu a pegasse com as mãos e a torcesse e esticasse. “Mr. Tambourine Man”. A voz fanhosa, o violão e a gaita tocados de forma displicente e sobretudo a necessidade de dizer algo essencial.
Passados quase 30 anos e muitos discos comprados e vendidos (os de vinil, obtidos com muito esforço e sacrifício), o fascínio permanece. E ganhou uma dose extra de contentamento na manhã de quinta-feita, dia 13 de outubro, quando soube que Bob Dylan, nome artístico de Robert Allen Zimmerman inspirado no poeta galês Dylan Thomas, havia ganhado o Prêmio Nobel de Literatura.
Uma escolha a princípio inusitada, mas que após rápida reflexão se tornou absolutamente compreensível: a longa produção de Dylan atingiu um patamar que a encaixa sem maiores atritos dentro do amplo conceito de obra literária, se entendemos poesia, jornalismo e dramaturgia (já premiados em outras edições do Nobel) como literatura.
Dylan é essencialmente um poeta. Ou melhor: um gênio da música com os dois pés fincados na pantanosa matéria de que é feita a poesia. Criador de imagens arrebatadoras, como aquelas que se sucedem na sua canção mais bela, “A Hard Rain’s A-Gonna Fall”, escrita aos 22 anos numa época em que o mundo poderia ter implodido durante a crise dos mísseis em Cuba:
“Ouvi o som de um trovão e seu estrondo era um alerta. Ouvi o ronco de uma onda que poderia afogar o mundo inteiro. Ouvi cem tocadores com as mãos em brasa. Ouvi dez mil sussurrando e ninguém ouvindo. Ouvi uma pessoa morrer de fome, ouvi muitas pessoas rindo. Ouvi a canção de um poeta que morreu na sarjeta. Ouvi o som de um palhaço que chorava no beco.”
Seus versos possuem algo que considero fundamental em um artista: o tal do zeitgeist, ou espírito do tempo. Dylan é fruto do meio em que foi forjado, o das canções de protesto do ídolo Woody Guthrie, o artista que cantou como ninguém os falidos, desempregados e herdeiros sem dinheiro do grande sonho americano.
Mas sua obra reflete acima de tudo o momento em que desponta, cantando as respostas que sopram no vento a uma geração que ansiava por respostas para sua avassaladora angústia existencial. Não por acaso, foi alçado tão jovem à condição de arauto dessa geração, algo que com o passar do tempo o incomodou. Dylan não era o arauto de uma geração, era o arauto de si mesmo.
O fato é que ele se tornou o primeiro Nobel nascido da contracultura dos anos 60. E sua escolha talvez represente também um reconhecimento tardio da Academia à Geração Beat, o movimento literário e comportamental que sacudiu a América na segunda metade dos anos 50.
Não que Dylan seja essencialmente um beat, mas bebeu fartamente da fonte de Ginsberg, Kerouac, Corso, Ferlinghetti e companhia, nenhum deles ganhador do prêmio máximo da literatura.
Com isso, por vias tortas, o Nobel honra e respalda obras fundamentais como “Uivo”, “On The Road”, “Almoço Nu” e “Um Parque de Diversões da Mente”. O que era subversão em 1956 torna-se cânone em 2016. É a prova de que seus versos, escritos há tanto tempo, tornaram-se proféticos: “Os tempos, eles estão mudando”.
Com Dylan, a Academia sueca amplifica a discussão sobre o que é e o que não é literatura. Depois de premiar dramaturgos e jornalistas, ela se volta ao universo da música. Nesse sentido, não será absurdo se daqui a um tempo premiar um autor ligado ao cinema. Um Woody Allen, talvez.
A justificativa para o prêmio é consistente: “Pode parecer uma decisão radical, mas, se você olhar lá para trás, você descobre Homero, Safo, que escreviam poemas para serem ouvidos, cantados, é a mesma coisa com Bob Dylan. Ainda lemos Homero e Safo”.
Creio que a literatura abarca e deve abarcar outras linguagens, como a própria Academia já vinha sinalizando nos últimos anos. Gosto de ver a passagem do tempo modificando conceitos e trazendo novas formas de expressão literária à tona.
Mas, para além de tudo isso, a escolha ainda possui um componente simbólico evidente: é a opção por um pacifista, um homem de ideias humanistas, num momento em que o mundo volta a sentir o bafo de tempos sombrios, com a evocação do mal ressuscitando nos partidos de extrema direita na Europa e num candidato histriônico, estúpido e irresponsável no seio da própria América, que volta a ganhar um Nobel de Literatura depois de muito tempo.
Poderia ser Philip Roth, provavelmente o maior escritor norte-americano vivo. Mas a escolha de Dylan talvez esteja mais sintonizada com o espírito do tempo em que vivemos. O tal do zeitgeist, de novo, jogando a favor do bardo.
A seguir, uma relação puramente afetiva das minhas dez canções essenciais de Dylan:
- “A Hard Rain’s A-Gonna Fall”
- “Mr. Tambourine Man”
- “The Times, They Are a-Changin”
- “It’s All Over Now, Baby Blue”
- “Farewell”
- “Like a Rolling Stone”
- “Lay Down Your Weary Tune”
- “It’s All Right, Ma (I’m Only Bleeding)”
- “Don’t Think Twice It’s All Right”
- “Masters of War”