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Quando Harper Lee morreu, em fevereiro, escrevi isto no blog:
“O mais triste para mim é que nunca cheguei ao final de seu grande romance. E é tristemente engraçado eu lamentar sua morte, mas como não reconhecer sua grandeza? Seu livro descansava ao lado da cama, coincidentemente. Comecei a lê-lo pela primeira vez há umas três semanas.”
Completei dizendo que devia a leitura a ela. Mais de dois meses depois de sua morte, cheguei ao final.
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Sua leitura foi interrompida porque me vi impelido a ler Philip Roth. Passado esse furacão, mergulhei em outros, que adiaram o cumprimento da promessa a Lee. Até que coloquei um basta nas leituras paralelas e fui em frente na história de Atticus Finch, Jem e Scout.
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Não sei o porquê, mas sempre tive a impressão de que encontraria um drama de tribunal, nunca uma história em que as protagonistas fossem crianças do começo ao fim – mesmo tendo assistido ao filme de Robert Mulligan.

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Filme que impregnou a leitura de imagens de Gregory Peck como o advogado que vai defender um negro acusado de estuprar uma branca. Atticus sempre foi Gregory Peck.
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A galeria de personagens criados por Lee é algo memorável. Fora as crianças – os filhos de Atticus, Jem e Scout, e seu amigo Dill, temos Boo Radley, um velho que vive exilado em sua casa e é transformado em um fantasma pelos garotos. A família Ewell, pai e a filha que alega o estupro, caracteriza o sul decadente e abandonado. Calpurnia, espécie de governanta da casa dos Finch depois da morte da mulher de Atticus, funciona como o equilíbrio familiar. Somam-se a esses a irmã de Atticus e os moradores de Maycomb, a cidade onde tudo ocorre.
Todos tão marcantes e bem construídos com camadas que vão se revelando complexas e cinzentas ao longo da leitura. Acompanhamos o amadurecimento das crianças, diante de situações adversas vividas na cidade, contrária à defesa de Atticus, e como isso vai se refletir nos outros personagens. É espantoso como Lee conseguiu inserir no corpo de personagens uma variável única e dependente do comportamento das crianças, como se todos dependessem dos filhos de Atticus para se desenvolverem.
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O título original tem um significado especial para as crianças, mas não consigo entender o título utilizado na tradução para o português.
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Outra coisa. Apesar de não ser personagem, nunca mais consegui ver Harper Lee como se não fosse a atriz Catherine Keener, que interpretou a escritora no filme “Capote”. Lee, na vida real, foi fundamental para o Truman Capote construir seu clássico “A Sangue Frio” – ela teria ajudado na preparação do texto final.

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A editora do livro no Brasil diz que encomendou nova tradução para a reedição do título, lançada em 2015. Isso é ótimo, mas falta mesmo um trabalho mais dedicado ao trabalho de editar um livro como este. Fico imaginando o que uma Cosac Naify poderia fazer – até mesmo uma Penguin-Companhia. Falta fortuna crítica, falta até mesmo um prefácio ou posfácio. Falta cuidado com o leitor brasileiro.
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Só para comparar, ao final da leitura do livro de Lee, fiquei interessado em continuar no sul dos Estados Unidos. Entre William Faulkner e Tennessee Williams, fiquei com Flannery O’Connor. Fui à estante pegar seus “Contos Completos”, editados pela Cosac. A coletânea poderia ser muito bem publicada por qualquer editora, mas, fora o cuidado gráfico tradicional da Cosac, um item faz toda a diferença: o posfácio de Cristóvão Tezza.
Sem contar as tradicionais sugestões de leitura, que enriquecem o conhecimento de quem quer saber mais sobre a autora.
Tezza destacou dois contos, aos quais fui ler imediatamente: “Um Último Encontro com o Inimigo” e “O Refugiado de Guerra”, este fabuloso.
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Li os dois livos de contos da O’Connor quando saíram pela Siciliano – “Sangue Sábio” e “Um Homem Bom É Difícil de Encontrar”, ambos presentes na coletânea da Cosac -, no início dos anos 90. Desde então, nunca mais voltei aos seus contos, até seguir as sugestões de Tezza.
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Voltando a Harper Lee, o livro se revela um retrato terno sobre o choque que o racismo imprimiu a uma geração. As constantes confrontações de Scout com o pai, até mesmo com os vizinhos que não concordavam com a defesa feita por Atticus para um negro, dão uma visão diversa do discurso natural sulista. Impossível não se envolver com a garota e comprar sua posição. Ela é a alma do livro, a própria existência de “O Sol É Para Todos”.
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Décadas depois, surgiu o que seria o segundo livro de Harper Lee, “Vá, Coloque uma Vigia”. Scout volta, 20 anos depois, a Maycomb para visitar o velho pai. Vai descobrir que a posição anti-racista de Atticus não é exatamente o que ela imaginava. Muito se discutiu sobre o livro – ele seria a primeira versão do romance que Lee lançou em 1960, que teria sido recusado pelos editores -, mas o fato é que “O Sol É Para Todos” é daquelas obras que não precisam de continuação ou introdução. Ela se basta.