Para fechar ao especial sobre os 400 anos da morte de Cervantes, publico artigo de Maria Augusta da Costa Vieira, professora de literatura espanhola da Universidade de São Paulo e autora de “O Dito Pelo Não Dito: Paradoxos de Dom Quixote” (ed. Edusp).
O texto foi uma encomenda para “O Tempo”, como parte da reportagem especial que produzi para o jornal em 2005, quando “Dom Quixote” comemorou 400 anos.
A primeira parte do especial traz a reportagem especial e a segunda contém uma entrevista com a hispanista Suely Reis Pinheiro.
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A INFLUÊNCIA DO “DOM QUIXOTE” NA LITERATURA
Por Maria Augusta da Costa Vieira

De modo geral, é possível dizer que a presença do Quixote se deu tanto na cultura quanto na literatura. No âmbito da cultura, a grande obra de Cervantes se difundiu por intermédio do mito; na literatura, por meio das formas literárias. No caso do mito que se criou em torno da personagem, ocorreu algo curioso: a obra tornou-se mais conhecida que propriamente lida.
As imagens de Dom Quixote montado em seu cavalo, esguio, com a lança em riste, e Sancho Pança ao lado, no seu burrinho desalinhado, são facilmente reconhecíveis, mesmo para aqueles que não leram a obra. A imagem dos dois personagens remete de imediato para sentidos supostamente extraídos do texto que dizem respeito à força do idealismo, à convicção plena no sonho e na capacidade de transformar o mundo. O mito do cavaleiro assim constituído é, sobretudo, fruto de uma determinada forma de interpretar a obra que se originou essencialmente no início do século 19 e se difundiu de forma prodigiosa em várias culturas. Não é raro encontrar na pintura, escultura, música, nas artes cênicas, no ensaio de caráter filosófico e também na poesia e no romance, a recuperação do mito quixotesco carregado de sentido de justiça, de amor e de altruísmo.
Por outro lado, se se considera sua influência literária, torna-se necessário ter em conta que o Quixote, assim como o romance picaresco que também surgiu na Espanha seiscentista com o “Lazarrillo de Tormes”, criou os fundamentos de um novo gênero – o romance – que se desenvolveria de maneira plena somente nos séculos 18 e 19. Do ponto de vista das transformações da forma literária, é possível afirmar que o gênero romanesco possui raízes no Quixote, o que se explicaria às inegáveis relações da obra com as diversas experiências da voz narrativa ao longo da história. Entre os inúmeros aspectos técnicos e temáticos do romance moderno que se originam em Cervantes, devem-se considerar, entre outros, os seguintes: pluralidade da voz narrativa, problematização do ato da leitura, reflexões sobre a própria obra e a literatura em geral, ironia e deslocamentos paródicos. No que tange, ainda, aos traços da ficção moderna originários no Quixote, ocupam lugar de relevo os impensáveis dispositivos artísticos escolhidos para produzir a impressão labiríntica de fusão entre a verdade histórica e a verdade poética.
Como se sabe, a primeira parte da obra foi publicada em 1605; a segunda, dez anos depois. Essa distância entre as publicações possibilitou um engenhoso recurso de composição: o autor transformou o suposto leitor da primeira parte em personagem da segunda, que contracena com Dom Quixote e Sancho Pança. Esses e outros predicados da obra seriam retomados e redimensionados ao longo da história da narrativa nos últimos 400 anos, em imprevisíveis e eloqüentes combinações. Por outro lado, o cavaleiro e seu escudeiro, em seus constantes diálogos – diálogos entre um erudito e um analfabeto – tocam nas fibras do leitor moderno, seja pela humanidade, seja pela comicidade, seja pelo desatino.
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