Meu primeiro Milton Hatoum foi “Relato de um Certo Oriente”, há cerca de oito anos. Não cheguei ao seu final. Representou, na época, um obstáculo intransponível.
Há dois anos, voltei a Hatoum, desta vez, seu “Dois Irmãos”. Existia o receio de encontrar uma obra similar à estreia do escritor, mas encontrei um livro deliciosamente fluente, bem escrito e saboroso. Literatura em maiúsculas.
O anúncio da presença do escritor no Fli-BH, que estará na abertura do festival, em 25 de junho, foi a deixa que precisava para percorrer a obra de Hatoum, retomar a leitura interrompida e ter condições de enxergar o seu trabalho com mais horizonte.
Li, em sequência, “Relato”, “Cinzas do Norte”, “Órfãos do Eldorado” e “A Cidade Ilhada” – dispensei a coletânea de crônicas “Um Solitário à Espreita”. A seguir, deixo pequenos comentários sobre cada leitura – todos os livros de Hatoum foram publicados pela Companhia das Letras.
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“Relato de um Certo Oriente” (1989)
O primeiro romance é o livro mais difícil de Hatoum. Nesta rodada de leitura, tentei pela segunda vez ler a estreia do escritor. Revelou-se tão difícil quanto antes, mas desta vez fui até o fim.
Hatoum aplica ourivesaria às palavras. Estamos diante de um romance que procura raízes não só na Manaus do escritor, na herança libanesa, mas também na linguagem. A troca de narradores força a criar múltiplas vozes, modos de expressão. Cada narrador se encontra com um interlocutor, como se fosse uma reprodução de “Mil e Uma Noites” assinada por várias Sherazades.
O ponto de partida é o retorno de uma mulher a Manaus depois de anos, em busca da matriarca Emilie. Vai dialogar com o irmão para reconstruir a família por meio das vozes calcadas no Oriente e no Amazonas. Nessa troca de vozes, Hatoum extrai o primeiro néctar da sua obra, já antecipando um trabalho singular na linguagem e na literatura.
“Tu silenciavas quando ela voltava da fonte com as mãos em cuia despejando água no teu corpo, te atraindo para os mosaicos do pátio, para a fonte, te conduzindo à pedra marrom e abaulada que fingia dormir um sono secular.”
“Cinzas do Norte” (2005)
O melhor livro de Hatoum. É o mais bem escrito, uma aula de literatura, de como usar recursos narrativos, de construção de personagens, ambientação. Seu terceiro livro une as experimentações de “Relato” com a fluidez de “Dois Irmãos”.
Parte novamente de um duo, desta vez, dois amigos, Lavo, o narrador, e Mundo, filho de uma família aristocrática e que tenta confrontar os desejos do rapaz. Lavo se fixou em Manaus para se tornar advogado, enquanto seu amigo, para marcar território em relação ao pai, busca a carreira artística.
Hatoum explora Manaus e seu entorno, num trabalho meticuloso de escolha de palavras, de formatação das frases e de construção de personagens. Insere a luta de gerações, a passagem de bastão da tradição para a modernidade, enquanto no meio surge a ditadura militar e sua nefasta influência.
Das grandes obras da literatura contemporânea.
“Fiquei escondido no matagal, enciumado, pensando se havia alguém, um homem dentro de casa: a vigília dos que se entregam a loucura mansa e melancólica, remoendo cenas e sussurros, dando mordidas no vento.”
“Algum emprego? ‘Que porra de emprego!? Não tem emprego nenhum, rapaz’, ele desdenhou. Na praça Pedro II, em frente a um cabaré antigo e arruinado, catou uma manga no chão, deu uma dentada e chupou até o caroço, lambuzando as mãos e a boca. Perto do coreto, gritou: ‘Diz pro Arana que eu conheço muito bem a história dele’. Arrancou uma flor do canteiro e a ofereceu a uma puta sentada no banco. Os dois foram até o coreto e começaram a dançar agarrados no meio da praça.”
“Órfãos do Eldorado” (2008)
O livro integra a coleção Mitos, apesar de a editora não listar o título como integrante – a informação aparece impressa somente na edição.
A novela curta nos põe diante de personagens que habitam a Manaus de sonhos e mitos. Se Amando quer se firmar como grande feitor, seu filho, Arminto, pensa o contrário. Dispensa ser o herdeiro de uma família tradicional da Vila Bela.
No meio da relação entre pai e filho, surge a fauna de personagens que transformam a narrativa num envolvente jogo de reflexos e sonhos. Curta, a novela é para ser lida de uma vez só, tal o encanto que puxa o leitor para dentro de suas páginas.
Até agora, é a última ficção de Hatoum – descontando o livro de contos, que reúne títulos já publicados. O que permite lançar a pergunta sobre o próximo passo do escritor. A exploração ficcional do Norte do país ainda exala inspiração?
“Quando olho o Amazonas, a memória dispara, uma voz sai da minha boca, e só paro de falar na hora que a ave graúda canta. Macucauá vai aparecer mais tarde, penas cinzentas, cor do céu quando escurece. Canta, dando adeus à claridade. Aí fico calado, e deixo a noite entrar na vida.”
“A Cidade Ilhada” (2009)
Coletânea de contos publicados em revistas e títulos especiais, este é seu trabalho mais fraco. Há momentos em que parece que estamos lendo um autor iniciante, tal a pobreza da prosa. É muito irregular e se situa num ponto fora da curva dentro da produção de Hatoum. Deixe as narrativas curtas de lado, vá direto aos romances. Lá, você vai encontrar o melhor do escritor.
Meu primeiro contato com o Hatoum se deu pelo livro “Dois irmãos”. Foi um belo de um primeiro contato.
Em abril desse ano, tive o prazer de conhecê-lo pessoalmente e ganhar de suas mãos o livro “Cinzas do norte”, que ainda não li, mas farei em breve. E fico feliz em saber que é o melhor livro do autor. Se eu gostei de “Dois irmãos”, me parece que não vou me decepcionar com este.
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Acho que é seu livro mais maduro, em que ele consegue explorar todos seus recursos muito bem.
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