Dias atrás, quando lia “É Isto um Homem?” (Rocco), de Primo Levi, topei com um texto de uma crítica literária em uma rede social. Dizia ela que, após ler o livro do italiano, não conseguiu escrever sobre ele – algo mais ou menos assim.
Bem, eu estava com uma leitura em progresso e já havia percebido algo semelhante. Não porque já se escreveu muito sobre uma das obras mais importantes a respeito da 2ª Guerra Mundial e o holocausto judaico. Até porque não é esse o objetivo do blog, se prender apenas a uma avaliação do livro – muito do que escrevo aqui passa mais pela experiência da leitura do que por uma avaliação crítica.
Então, o impacto é grande que não vejo como desenvolver muito mais do que isto sobre o livro, uma memória do período que Levi passou num campo de concentração na Polônia, testemunho frio e distante. Uma forma, talvez, de expurgar o que viu e viveu.
Não, não dá para escrever sobre ele. Destaco apenas alguns trechos do livro.
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“Falamos de muitas coisas naquelas horas; fizemos muitas coisas; mas é melhor que não permaneçam na memória.”
“Justamente porque o Campo não é uma grande engrenagem para nos transformar em animais que não devemos nos transformar em animais; até num lugar como este, pode-se sobreviver, para relatar a verdade, para dar nosso depoimento; e, para viver, é essencial esforçar-nos para salvar ao menos a estrutura, a forma da civilização. Sim, somos escravos, despojados de qualquer direito, expostos a qualquer injúria, destinados a uma morte quase certa, mas ainda nos resta uma opção. Devemos nos esforçar por defendê-la a todo custo, justamente porque é a última: a opção de recusar nosso consentimento. (…) Devemos marchar eretos, sem arrastar os pés, não em homenagem à disciplina prussiana, e sim para continuarmos vivos, para não começarmos a morrer.”
“Nasce então, dentro de mim, uma pensa desolada, como certas mágoas da infância que ficam vagamente em nossa memória; uma dor não temperada pelo sentido da realidade ou a intromissão de circunstâncias estranhas, uma dor dessas que fazem chorar as crianças. Melhor, então, que eu torne mais uma vez à tona, que abra bem os olhos; preciso estar certo de que acordei, acordei mesmo.”
“Agora, todo o mundo está raspando com a colher o fundo da gamela para aproveitar as últimas partículas de sopa; daí, uma barulheira metálica indicando que o dia acabou. Pouco a pouco faz-se silêncio. Do meu beliche, no terceiro andar, vejo e ouço o velho Kuhn rezando em voz alta, com o boné na mão, meneando o busto violentamente. Kuhn agradece a Deus porque não foi escolhido. Insensato! Não vê, na cama ao lado, Beppo, o grego, que tem 20 anos e depois de amanhã irá para o gás e bem sabe disso, e fica deitado olhando fixamente a lâmpada sem falar, sem pensar? Não sabe, Kuhn, que da próxima vez será a sua vez? Não compreende que aconteceu, hoje, uma abominação que nenhuma reza propiciatória, nenhum perdão, nenhuma expiação, nada que o homem possa fazer, chegará nunca a reparar? Se eu fosse Deus, cuspiria fora a reza de Kuhn.”
“Aqui é assim. Sabem como é que a gente diz ‘nunca’, na gíria do Campo? Morgen früh: amanhã de manhã.”
2 comentários em ““É Isto Um Homem?”, a impossibilidade de escrever sobre a obra de Primo Levi”