Comprei “A Morte do Gourmet” (Companhia das Letras) no impulso, após ler a contracapa. A história: um crítico gastronômico está à beira da morte e revê sua obra e vida nos momentos finais, à procura de um sabor único, que não consegue lembrar.
Muriel Barbery, francesa filósofa e radicada na Normandia, criou um protagonista cuja voz é entrecortada com visões de pessoas que conviveram com Pierre Arthens, o crítico. Essa multiplicidade remonta a personalidade forte do gourmet, vista por filhos, amigos, parentes, um gato, amante.
Seu personagem não é linear, a leitura dessas impressões permite enxergar um ser polêmico, rigoroso com suas opiniões – odeia a família e ponto – e extremamente dedicado à sua profissão – para ele, seu legado é sua obra, mais do que os filhos.
Os curtos capítulos dão vazão à procura de Arthens. Ele vai lembrar de receitas da avó, de camarões, tomates, sorvetes, peixes crus, uísque, em que a descrição do item se torna uma cena memorialística (uma mistura de Proust com Melville), com recordações de viagens com seus pais, de encontros com familiares quando criança e amigos já durante sua carreira jornalística.
Nessa fase final, Arthens se restringe à busca do sabor único. Pouco sabemos dele durante suas memórias – o personagem surge na voz dos outros. Suas descrições são saborosas, o que justifica o título de maior crítico gastronômico do mundo.
O livro poderia ser um pastiche nas mãos de um autor menos talentoso, mas com Barbery desperta paladares.
Após ler “A Morte do Gourmet”, fui atrás do outro livro de Muriel Barbery traduzido para o português, “A Elegância do Ouriço” (Companhia das Letras). Sua prosa fluente me fez curioso. Este “A Elegância” chegou primeiro ao Brasil, mas sua ação se passa depois de “A Morte” – intricadas decisões editoriais talvez poderiam responder essa lógica. Barbery recupera o crítico gastronômico Pierre Arthens, prestes a morrer, para contar a história num edifício parisiense.
Reneé é a zeladora que gosta de deixar a impressão preconceituosa de seus moradores viva, a de que ela é ignorante e apenas está lá para servi-los. Bem educada, leitora de Tolstói e de filosofia, fã de Yasujiro Ozu, ela vive solitária com seu gato, enquanto destrincha o comportamento daquela pequena vila burguesa.
Ela é uma das narradoras, a que conduz a história, margeada por Paloma, uma adolescente em crise que resolve se matar. Alternadamente aos capítulos de Reneé, lemos páginas dos diários da garota, que marcou data e modo para sua morte.
Críticas sutis (de Reneé) e nem tanto (de Paloma) ao modo de viver dos moradores, superficiais e egoístas, dão o tom do romance, que mistura tons de filosofia e fúria juvenil. Barbery consegue se equilibrar nessa corda, sem se aprofundar de um lado e sem cair no ridículo do outro – entendemos o mergulho filosófico e compreendemos o discurso banal de uma garota de 13 anos.
O cotidiano do condomínio irá mudar com a chegada do senhor Kakuro Ozu, mais do que uma coincidência de nomes, mas também um leitor de Tolstói. Ele irá chacoalhar a vida de Reneé e seus preconceitos, irá fazê-la repensar sua misantropia e abrir algumas portas – vai até provocar um elo improvável com Paloma, para facilitar a aproximação com a zeladora.
“A Elegância do Ouriço” é uma crítica de costumes das mais interessantes, ainda que não incisiva, mas cuja leitura se revela prazerosa. A morte, personagem que ronda a narrativa, irá suscitar devaneios em Reneé, que se vê diante da finitude.
Muriel Barbery é uma autora que transpira uma certa classe, ao mesmo tempo em que abre feridas nas relações sociais. Sua prosa é límpida, fluente, muito bem escrita e cheia de referências – sem ser pedante. Por baixo disso tudo, ela deixa aquela centelha que permanece mesmo após fechados os livros.
“Termino às nove da noite, e de súbito me sinto velha e muito deprimida. A morte não me apavora, menos ainda a de Pierra Arthens, mas é a expectativa que é insuportável, esse oco suspenso do ainda não, diante do qual sentimos a inutilidade das batalhas. Sento-me sozinha, em silêncio, sem luz, e experimento a sensação amarga do absurdo. Minha mente deriva devagar.”“Qual é essa guerra que travamos, na evidência de nossa derrota? Manhã após manhã, já exaustos com todas as batalhas que vêm, reconduzimos o pavor do cotidiano, esse corredor sem fim que, nas derradeiras horas, valerá como destino por ter sido tão longamente percorrido. Sim, meu anjo, eis o cotidiano: enfadonho, vazio e submerso em tristezas. As alamedas do inferno não são estranhas a isso; lá caímos um dia por termos ficado ali muito tempo. De um corredor às alamedas: então se dá a queda, sem choque nem surpresa. Cada dia reatamos com a tristeza do corredor e, passo após passo, executamos o caminho de nossa sombria danação. Ele terá visto as alamedas? Como se nasce, depois de se ter caído? Que pupilas novas em olhos calcinados? Onde começa a guerra, e onde cessa o combate? Então, uma camélia.”