Para mostrar os dois lados de uma batalha em Iwo Jima, na 2ª Guerra Mundial, Clint Eastwood filmou em 2006 os dois lados do confrontro: “A Conquista da Honra”, com ênfase nos Estados Unidos, e “Cartas de Iwo Jima”, uma rara versão do lado japonês.
Essa visão dupla é sempre bem-vinda, pois ajuda a colocar sob perspectiva heróis, táticas e manobras.
A Copa do Mundo de 1950 já foi contada por diversos olhos, mas uma visão rara é a uruguaia. “Maracanã – Os Labirintos do Caráter” (Companhia das Letras), do jornalista uruguaio Franklin Morales, é peça fundamental para compreender o que foi aquela final entre Brasil e Uruguai.
Lançado somente em livro digital, pelo selo Breve Companhia, “Os Labirintos do Caráter” é uma reportagem que contextualiza a rivalidade entre as duas seleções e destaca as figuras essenciais que levaram o país vizinho ao título mundial. Além disso, compara métodos e mostra que o Maracanazzo foi muito mais do que uma falha de Barbosa.
Morales começa a saga em 1940, ano em que começa uma série de 27 duelos entre Brasil e Uruguai, até culminar na final. As seleções foram se conhecendo por dez anos, período em que a Europa estava paralisada por conta da 2ª Guerra.
O jornalista mostra como os jogadores da final do Mundial foram entrando nos times aos poucos. E já começa a perfilar Obdúlio Varela, o capitão uruguaio que caracterizou a Celeste Olímpica na campanha de 1950.
Na preparação para a Copa, as diferenças são enormes. O Brasil ficou concentrado por quatro meses, o que causou tensão entre os jogadores. Flavio Costa, o treinador, conduzia o time com mão de ferro, concentrador e pouco afeito a conversas.
Já o Uruguai, meses antes da Copa, não sabia do paradeiro de Varela. A dois semanas do início do Mundial, não tinha técnico. O time não estava escalado. Meio de improviso, foi ao Brasil.
Na primeira fase, o Uruguai teve a sorte de enfrentar somente uma seleção, a Bolívia, por conta da desistência de times europeus, enquanto o Brasil jogou um grupo completo.
Na fase final, uma espécie de minicampeonato de pontos corridos, a tabela foi dirigida a favor do Brasil, que jogou apenas no Rio de Janeiro e escapou de São Paulo, local onde enfrentou vaias dos torcedores.
Reservou para o jogo final o rival sul-americano, na expectativa de que fosse um amistoso. A história mostrou que não foi bem assim.
Às vésperas do jogo, a então CBD mudou a concentração brasileira, de um hotel tranquilo e reservado para São Januário, com portões abertas e muita movimentação o dia inteiro. Isso desestabilizou o time.
Sem diálogo, Costa dirigia o time com rigor, enquanto o técnico uruguaio, Juan López, conversa com a equipe e sempre ouvia Varela. Como as seleções se conheciam bem, por conta das quase três dezenas de confrontos na década, os jogadores sabiam o que esperar.

Nascia então o lendário Varela como o mundo acabou o conhecendo. Morales o descreve como um líder implacável, muito mais do que um técnico em campo, mas alguém a seguir de olhos fechados. Era duro e jogou a partida decisiva com dores no pé. E criou uma mitologia que assustou a seleção brasileira antes mesmo de surgir.
O principal fato que Morales narra e que, para muitos, foi decisivo para a vitória uruguaia e para o surgimento do mito, aconteceu logo após o gol brasileiro. Varela pega a bola e se dirige para o bandeirinha, não para o meio-campo. Vai reclamar de um impedimento. Enquanto todos esperavam o reinício, Varela jogou um balde de água fria.
Jogadores e torcida não entenderam o que estava acontecendo. A comemoração amorteceu. Foi um tempo de desafogo para o Uruguai, 1min50 cronometrado. Varela não entendi o inglês do bandeirinha, que por sua vez não entendi o espanhol do uruguaio. Chamaram um tradutor. E o tempo passou.
Varela confessou depois que fez aquilo para esfriar o jogo. Sabia que se o jogo reiniciasse imediatamente o Brasil faria o segundo gol e acabaria com a partida. A parada ajudou a colocar os nervos no lugar.
A partir daí, o Uruguai se recompôs e fez os dois gols que deram o bicampeonato. Sabiam que podiam explorar a fragilidade do lateral-esquerdo Bigode e foi por ali que venceram. Gigghia deu o passe para Schiaffino marcar o primeiro e depois fez o gol que liquidou com a partida e com a carreira de Barbosa.
Morales desfia a personalidade de jogadores fundamentais da época. E mostra que os brasileiros ficaram intimidados pela força de Varela.
Esclarece os motivos pelos quais o Uruguai foi campeão, num país em que o título era cantado como certeza dias antes da partida final. Boates foram reservadas, jornais destacavam o Brasil como campeão em manchetes muito mais do que patrióticas, enquanto o time sofria em meio à bagunça de São Januário.
Varela talvez tenha inventado no vestiário do Maracanã a estratégia de incentivos por via emocional. Ele usou os jornais para carregar o time ao campo.
Na madrugada pós título, ainda no Rio de Janeiro, Varela deixou a concentração para andar pela cidade. Entrou em um bar e foi saudado por torcedores brasileiros, que choravam a derrota e lamentaram não ter um Varela no time.
O Maracanazzo talvez tenha sido a derrota mais dolorida no imaginário – estádio lotado, time com histórico de gols, favoritismo. Talvez a de 1982 tenha sido mais sofrida. De qualquer forma, 1950 ajudou a mudar a forma de pensar o futebol no Brasil. A Copa de 1958 foi organizada com base no que não deveria ser feito.
Pena que depois disso o Brasil voltou a fazer o que não deveria ser feito. CBD se tornou CBF e o resto é história – na Granja Comary ou em Miami, talvez na Suíça.
“Os Labirintos do Caráter” se revela então um livro fundamental para entender que o Brasil não poderia nunca sofrer de síndrome de jeca, pois foi soberbo em toda a competição. É uma lição que nunca aprendeu, basta ver as propagandas atuais sobre a Copa e a cobertura de alguns veículos, como a Globo.
Publicitários, principalmente Nizan Guanaes, e o jornalismo da Globo e de outros veículos ufanistas deveriam ler este livro urgentemente. Ainda dá tempo.
